Tecnologia de Vigilância "Made in Israel": solução ou cavalo de troia para Minas Gerais?
- Katia Torres

- 4 de jul.
- 9 min de leitura
O som agudo da sirene rasgou a madrugada. Eram 2h55 da manhã de uma sexta-feira, 13 de junho de 2024, em Kfar Saba, Israel. A vice-prefeita de Divinópolis, Janete Aparecida (Avante), foi bruscamente acordada por um alerta no celular e o disparo das sirenes que anunciavam um possível ataque. Na cidade a apenas 15 km de Tel Aviv, conhecida por seu ambiente de inovação e qualidade de vida, a realidade da guerra se impôs.
Numa estranha, quase irônica, coincidência, Janete – participante de uma comitiva brasileira de 18 políticos entre prefeitos e vice-prefeitos – correram para a proteção fria e concreta de um bunker antiaéreo. Logo eles, que estavam em Israel justamente para um curso sobre liderança, tecnologia e, crucialmente, roteção e resiliência em cenários de crise. A experiência vivida e televisionada pareceu, para muitos, mais uma simulação de crise emergencial do que um real confronto com a crua realidade do genocídio em Gaza, a poucos quilômetros dali, e da recente escalada de tensões com o Irã.

Esse grupo de políticos, na maioria da direita e extrema-direita brasileira e muitos deles defensores de mais armas para a população (como apoiava o ex-presidente Jair Bolsonaro), não foi parar em Israel por acaso. A viagem, organizada pela embaixada de Israel, aconteceu num momento em que as relações entre Brasil e Israel estão bem tensas. Isso porque o governo atual do presidente Lula da Silva, critica duramente as ações de Israel em Gaza – que muitos no mundo, e o próprio Brasil, já compararam a um genocídio (extermínio de um povo). Além disso, a política externa brasileira defende a paz e é contra o colonialismo (dominação de um país sobre outro). Esse choque entre a posição oficial do Brasil e a viagem desses políticos merece uma pergunta: quem realmente está se beneficiando destas estratégias?
A ida desses prefeitos e vice-prefeitos a Israel, ignorando os avisos do governo brasileiro (Itamaraty) e passando por cima da política externa do país, mostra uma tática preocupante. Parece que interesses estrangeiros estão tentando negociar diretamente com as cidades, sem passar pelo controle do Congresso ou dos ministérios em Brasília. E qual seria o real interesse destas investidas? Fazer com que as cidades e seus moradores aceitem mais facilmente a compra de tecnologias de vigilância e controle social, vendidas como "testadas em guerra" (jargão da indústria de segurança e foco de análises críticas, como as do The Intercept).
É importante os cidadãos tenham ciência sobre essa história toda: o lobby de outros países, o marketing que usa a guerra como propaganda, a venda de sistemas de vigilância total o tempo todo (como um "panóptico digital", onde todos são vigiados, online) e os problemas éticos que surgem quando a segurança vira mercadoria e os cidadãos podem se tornar alvos constantes.
A experiência no bunker, embora breve, foi de tensão, como relatou a própria Janete em vídeo nas redes sociais: "Ao chegar no abrigo, vi que muita gente não tinha ouvido. Voltei correndo, bati em todos os quartos. Desceram então todos pro abrigo", contou a vice-prefeita. Além dela, a comitiva incluía outros políticos mineiros como o prefeito de Belo Horizonte, Álvaro Damião (União Brasil), e o vice-prefeito de Uberlândia, Vanderlei Pelizer (PL).
A viagem, em si, já era controversa antes mesmo das sirenes. Como mencionado, os políticos ignoraram o alerta explícito do Itamaraty. Diante do perigo concretizado pelos alarmes, a situação escalou para uma disputa de narrativas sobre o apoio consular. Em entrevista à GloboNews, o senador Carlos Viana (Podemos-MG), que também integrava o grupo, criticou o que chamou de 'absoluta ausência' do Itamaraty nas negociações para a saída das autoridades, atribuindo o sucesso da evacuação ao Grupo Parlamentar Brasil-Israel, por ele presidido. Contudo, à mesma GloboNews, integrantes do Ministério das Relações Exteriores contestaram essa versão, afirmando que as embaixadas brasileiras em Israel, na Jordânia e na Arábia Saudita se envolveram ativamente para garantir a saída segura do grupo, acompanhando inclusive seus deslocamentos.
Em um contraponto marcante à missão da comitiva brasileira, junho de 2024 também testemunhou um intenso engajamento de ativistas globais pela paz e assistência humanitária em Gaza. Enquanto os políticos mineiros exploravam tecnologias de segurança, milhares de manifestantes, inclusive no Brasil, uniam-se à Marcha Global para Gaza, clamando pelo fim das hostilidades, pela abertura de corredores de ajuda e pela condenação dos ataques. Paralelamente, a iniciativa humanitária conhecida como Flotilha da Liberdade tentava entregar suprimentos essenciais à Faixa de Gaza, mas foi interceptada por forças navais israelenses. Entre os ativistas detidos nesta operação estava o brasileiro Thiago Ávila. Essas ações, focadas na solidariedade e na busca por soluções pacíficas, e a repressão enfrentada por seus participantes, oferecem uma perspectiva oposta à da delegação política.
Enquanto isso, Israel enfrentava o impacto de um ataque de mísseis iranianos, que chegaram a atingir alvos em Tel Aviv. Foi nesse cenário que os políticos deram entrevistas diretamente de bunkers, reforçando a impressão de estarem numa missão emergencial de segurança. Mas, segundo o Intercept, o governo israelense se aproveitou justamente do clima de guerra para apresentar seus “produtos de segurança” — sistemas de monitoramento, policiamento automatizado, inteligência artificial aplicada ao controle urbano e equipamentos de vigilância em massa. Diante disso, a pergunta ecoava ainda mais forte: o que esta comitiva fazia em Israel, um país imerso em um conflito devastador com os palestinos e que é, paradoxalmente, um dos maiores exportadores de tecnologia de segurança?
A resposta pode transcender a simples viagem de estudos ou a busca por gestão de crise. Ela aponta para uma intrincada operação de propaganda, lobby e a lucrativa venda de tecnologias de vigilância, onde a "segurança testada em combate" se torna um produto cobiçado, e os dilemas éticos parecem se dissolver sob uma camada de modernização e eficiência.
Essa estratégia de marketing, que associa a origem e a eficácia de tecnologias de segurança à experiência em conflitos, é explicitamente adotada por empresas que trazem essas soluções para o mercado brasileiro. Um exemplo notório é o da Ôguen Tecnologias, empresa distribuidora de tecnologia israelense no Brasil, que em uma postagem em sua rede social [@oguen_tecnologias], referente a uma entrevista de seu CEO, Hen Harel, afirma:"
A cidade que se vende como um modelo de resiliência e inovação tecnológica é também o epicentro de um laboratório a céu aberto para essas mesmas tecnologias, com um custo humano incalculável, e um alvo constante, o que lhe permite vender uma suposta eficiência em segurança.
O Sombrio "Selo de Qualidade": Tecnologia Forjada na Ocupação
A presença de tal comitiva, participando de uma feira de tecnologia e de um programa de capacitação a convite do governo israelense, conecta-se diretamente à tese do jornalista Antony Loewenstein. No livro Laboratório Palestina, ele argumenta que os territórios palestinos ocupados são, efetivamente, um campo de testes para a indústria de segurança israelense.
Drones, softwares de vigilância, sistemas de reconhecimento facial e armamentos são desenvolvidos e intensamente testados em um ambiente de ocupação e conflito contra a população palestina. Ser "testado em combate" – ou seja, em um contexto de supressão e violência – torna-se um macabro diferencial de mercado, um selo de qualidade.
Ao buscarem essa tecnologia, os políticos mineiros, como Álvaro Damião, Janete Aparecida e Vanderlei Pelizer, arriscam importar não apenas equipamentos de vigilância mas as lógicas de controle e confrontação inerentes à sua criação. Essa busca por soluções externas é impulsionada pela lógica neoliberal na gestão pública, que, como aponta Iara Schiavi, em seu artigo Colonialismo de Dados e Modulação Algorítmica, incentiva a adoção de tecnologias de smart cities de empresas estrangeiras. Isso leva à dataficação da vida urbana e a uma perigosa dependência do Brasil em relação às potências tecnológicas do Norte Global.
O Panóptico Digital Mineiro: Vigilância, Punição e os Corpos Vulneráveis
O interesse por estes "modais de segurança" testados em conflito e por tecnologias de smart cities (como a que a vice-prefeita Janete Aparecida buscou em outra controversa viagem a Nova York, custeada pelo município - publicada pelo Divinews, aponta para uma priorização de vigilância e punição. Isso evoca o Panóptico de Michel Foucault: a estrutura de vigilância que induz à autodisciplina. Na era digital, esse conceito evolui para um Panóptico digital, uma rede onipresente de coleta de dados que permite um controle social sem precedentes.
Para ilustrar como isso poderia se materializar em uma cidade como Divinópolis, imagine um novo programa municipal chamado, hipoteticamente, Divinópolis Segura e Conectada. Oficialmente, o objetivo seria nobre: usar tecnologia de ponta para reduzir a criminalidade e melhorar o trânsito. Para isso, a prefeitura instalaria milhares de câmeras inteligentes por toda a cidade – em ruas, praças, entradas de bairros, perto de escolas e postos de saúde. Essas câmeras não apenas gravariam, mas usariam inteligência artificial para reconhecimento facial, identificação de 'comportamentos suspeitos' (como pessoas paradas por muito tempo em um local ou correndo sem motivo aparente), e leitura automática de placas de veículos.
Todos esses dados seriam enviados em tempo real para uma central de monitoramento unificada, onde algoritmos cruzariam informações com bancos de dados da polícia, registros sociais e, quem sabe, até com perfis de redes sociais. Os cidadãos, ao caminharem pela cidade, estariam constantemente sendo observados, analisados e potencialmente classificados por esse sistema.
Pequenos delitos, como uma infração de trânsito, ou até mesmo a participação em um protesto pacífico, poderiam ser registrados e armazenados, criando um perfil detalhado de cada indivíduo. Embora vendido como uma ferramenta para segurança, esse 'Panóptico Divinopolitano' transformaria cada cidadão em um potencial alvo de vigilância constante, onde o olho que tudo vê do sistema poderia ser usado para controle social, intimidação ou até mesmo para fins políticos, muito além da simples prevenção de crimes.
Em Minas Gerais, e no Brasil como um todo, com suas profundas desigualdades, o risco é que esse panóptico digital direcione seu foco punitivo sobre os grupos vulneráveis. O Atlas da Violência 2025, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), demonstra como a violência atinge desproporcionalmente certas populações. Tecnologias de vigilância podem intensificar o controle sobre comunidades marginalizadas, reforçando estigmas e a exclusão, em vez de abordar as causas estruturais da violência, como no exemplo da persistente violência contra mulheres negras e indígenas. Essa lógica mina a alteridade – o respeito pela diferença – e acentua a polarização.
Segurança em Minas: Entre a "Revolução Invisível" e a Força Importada
Minas Gerais, sob o governo de Romeu Zema, identificado com o espectro da extrema direita, apresenta um cenário complexo de segurança pública. Enquanto o Atlas da Violência 2025, do Ipea, aponta para um amadurecimento de políticas de segurança – a chamada "revolução invisível", que foca em gestão, inteligência e prevenção, com ações como o "Ficar Vivo" –, dados mais recentes do Mapa da Segurança Pública de 2025, do Ministério da Justiça e Segurança Pública revelam tendências preocupantes que questionam a eficácia global das estratégias adotadas.
Exemplo disso é a quantidade de assassinatos em Minas Gerais (que inclui homicídios dolosos, latrocínios e lesões corporais seguidas de morte, excluindo mortes por intervenção policial) teve alta de 3,7% entre 2022 e 2023, passando de 2.604 para 2.700 casos. Minas foi um dos poucos estados do país (apenas cinco) a registrar aumento nesse período, enquanto a maioria das unidades da federação viu uma redução. O homicídio doloso, especificamente, conforme dados do Mapa da Segurança Pública, cresceu 7,38% entre 2023 e 2024 no estado, contrastando com a redução de 6,33% no restante do país.
A letalidade policial também disparou. O total de pessoas mortas por policiais em Minas Gerais aumentou 43,17% entre 2023 e 2024, saltando de 139 para 195 casos. Esse crescimento em MG só foi menor que o registrado em São Paulo (61,31%), e o Sudeste foi a única região do país a apresentar aumento neste tipo de crime. As mortes de agentes de segurança pública também cresceram 33,33%, passando de 3 em 2023 para 4 em 2024.

No que tange ao feminicídio, Minas Gerais foi o segundo estado com mais registros em 2024, com 133 casos – uma média de uma morte a cada quase três dias. Esses dados complexos mostram que, mesmo com a existência de políticas de "revolução invisível", a gestão de segurança em Minas Gerais, sob um governo de extrema direita, enfrenta desafios significativos, com aumentos preocupantes em indicadores-chave de violência e letalidade policial.
A busca por modelos em Israel pelos políticos mineiros, portanto, parece alinhar-se mais a uma lógica de controle tecnológico e força, similar à abordagem de força bruta tão incentivada por políticos bolsonaristas.
A atuação da vice-prefeita Janete Aparecida (Avante) ilustra essa tensão. Enquanto busca referências internacionais e defende uma "sociedade mais igualitária" em suas mídias sociais e campanhas políticas, sua opção por modelos de segurança que podem acentuar desigualdades e a gestão de suas missões internacionais levantam sérios questionamentos. Conforme citado pelo Divinews, Janete mantém laços próximos com o governo Zema e é considerada um nome forte do Avante em Minas Gerais. A política também organizou, nas últimas eleições, o comício do ex-presidente, inelegível e réu em investigação sobre tentativa de golpe militar no Brasil.
De acordo com matéria publicada pelo jornal "Divinews", de Divinópolis, a presença da vice-prefeita Janete Aparecida na viagem a Israel levanta dúvidas quanto à transparência e aos reais objetivos da missão, pelo fato do financiamento ter sido internacional completo e sem custos para o município. Tais questionamentos se somam às controvérsias anteriores, como sua declaração de bens (que mostrou um aumento patrimonial de 41% entre 2020 e 2024. Esses fatos contrastam com a "propagada moralidade" da gestão e a urgente necessidade de transparência.
Urgência de coabitar
A verdadeira segurança para Minas Gerais e para o Brasil não emergirá de tecnologias forjadas na guerra ou da simples aplicação da força. Ela será construída sobre o alicerce da inteligência, da gestão eficaz e da prevenção (a "revolução invisível"), do respeito incondicional aos direitos humanos, da transparência na gestão pública – como demandam os cidadãos de Divinópolis e de todo o estado – e da capacidade de construir segurança com e para todos.
É um chamado urgente ao debate ético e à construção de um futuro onde a tecnologia sirva à vida e à liberdade, não ao controle e à opressão.








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